VELAS VERMELHAS
Era uma família bastante religiosa. Católicos fervorosos, praticantes. Seu Bentinho, sua esposa Dona Zica e o filho Cesinha, não perdiam a uma missa domingueira. Fiéis, aos domingos pela manhã frequentavam a Igreja de Santa Cruz, onde acompanhavam toda cerimônia religiosa através do Boletim Litúrgico.
Quase que sem piscarem ou olharem para quaisquer dos lados, ouviam a pregação do Padre, atentos à mensagem daquele líder paroquial. Comungavam-se “saboreando” espiritualmente a hóstia consagrada, rezando com as cabeças inclinadas, até que aquela sagrada partícula de pão sem fermento se dissolvesse por completo em suas bocas, e ainda, não deixavam aquela casa de Deus sem antes entrarem na fila do confessionário, local em que fielmente confessavam todos os “pecados” cometidos durante a semana, saindo daquele confessionário sempre com penitências impostas pelo Padre como forma de os livrarem dos pecados semanais.
Não perdiam também as novenas de orações realizadas pela catequese. Seguiam-nas sem deixar de assistir a nenhuma uma delas…
E naquela sexta-feira não foi diferente. Nesse dia da semana era realizada a sequência dos nove dias de orações. Bentinho, Dona Zica e Cesinha, este com 16 anos de idade, acompanhavam a novena inteira, a qual começava às sete da noite e se encerrava por volta das oito e meia da noite. Assim, após o término de tal compromisso religioso, iam diretamente para casa, pois Cesinha, no auge de sua adolescência, nas sextas-feiras, sempre saia pela cidade a passeio com seus amigos, atrás de suas paqueras.
Naquela noite, mais ou menos por volta das nove horas, chegaram de frente às suas casas, e Bentinho, como sempre, imbicava o fusca bege, modelo “Fafá”, na entrada da garagem, onde ritualmente, Dona Zica, com um molho de chaves em uma das mãos, descia do carro e, quase que em “passo ordinário”, marchava em direção ao portão para abri-lo a fim de que Bentinho viesse a guardar o veículo.
No entanto, nessa ocasião, quando Dona Zica se preparava para encaixar uma das chaves no cadeado que prendia as correntes do portão daquela garagem, ao olhar para um canto do jardim de sua residência, foi tomada de uma grande surpresa, seguida de um grande susto por causa de uma pequena claridade que viu…
Aos pés de um coqueiro plantado naquele jardim, havia um punhado de velas acesas, mais precisamente um grupo de sete velas vermelhas juntas, amarradas em sua volta por uma fita preta e, grudado nesta, um pequeno laço vermelho que as enfeitava.
Ao ver essa cena, Dona Zica, quase que em estado de choque, instantaneamente se “benzeu” fazendo o sinal da cruz com uma de suas mãos, percorrendo seus dedos por toda extensão de sua testa e peito, e ensaiou um berro de pavor, mas se conteve. E retirando rapidamente a chave do cadeado, sem ter chegado a abri-lo, voltou para o carro, do lado do motorista, e com a voz baixa para não despertar curiosidades de vizinhos, falou a Bentinho:
— Bem…! (não se sabe se “bem” de afeto ou se “Ben” de Bentinho) Fizeram feitiço pra gente! Olha lá no cantinho do jardim… Deixaram um monte de velas vermelhas acesas!…
Bentinho arregalou os olhos face à declaração de Dona Zica. De imediato desceram do carro, ele e Cesinha, e foram constatar de perto do que se tratava.
Entraram pelo portãozinho de pedestres, ao lado do portão da garagem, e se aproximaram daquelas velas, no que Bentinho, após um impetuoso sinal da cruz e em seu conhecimento na arte da fé, foi logo dizendo:
— Meu Deus?!… Não mexam! Não mexam nisso!… Isso é trabalho feio! Só pode ser coisa do mal! Mas quem poderia ter feito isso?
E Dona Zica respondeu:
— Sei lá Bentinho! Damo-nos tão bem com a vizinhança, não temos inimizades com ninguém. Não consigo fazer ideia de quem poderia querer nos prejudicar com esse trabalho… Deve ser feitiçaria!…
E Cesinha não perdendo oportunidade de acusar uma desafeta, vizinha ao lado, mãe de sua ex-namorada, que não gostava dele por causa de seus cabelos compridos e das músicas agitadas que gostava de ouvir em seu quarto com os sons das caixas no último volume, disse:
— Só pode ser coisa da Dona Miriam, essa bruxa aí do lado! Eu sempre a achei esquisita mesmo. Acho que esse trabalho é pra eu não voltar com a filha dela.
— Cala a boca Cesinha! – esbravejou Dona Zica. Onde já se viu pensar isso da Dona Miriam. Vizinha de anos e que sempre esteve pronta a nos prestar qualquer favor.
— É verdade! – disse Bentinho concordando com sua esposa, e continuou:
— Mas nós não podemos ficar aqui parados olhando essas velas se queimarem. Temos que fazer alguma coisa. Vamos para a casa sacerdotal e chamar o Padre Onofre para retirar isso daqui, benzer esta casa e tentar nos falar por que fizeram esse trabalho.
E assim, deixaram aquele jardim, trancaram o portãozinho, e entraram no carro, tendo Bentinho partido velozmente em direção à casa dos Padres, ao lado da Igreja Santa Cruz.
Lá chegando, depois de Bentinho relatar o inusitado fato que estava ocorrendo no jardim de sua casa, o Padre Onofre, muito amigo daquela família, se vestiu com a sua bata, colocou o rosário e o terço bizantino em um de seus bolsos, pendurou um grande crucifixo e a medalha de São Bento no pescoço, passou a mão na galheta contendo água benta, solicitou “reforço” (acompanhamento) com o jovem Padre Maurício, ainda em estágio no meio paroquial, aproveitaram a carona e partiram para a casa de Bentinho.
Ao chegarem de frente a casa e descerem do carro, Dona Zica abriu o portãozinho e Padre Onofre acompanhado pelo Padre Maurício adentraram primeiramente, seguidos pela família. Assim que Padre Onofre viu as velas vermelhas acesas, imediatamente fez o sinal da cruz (por três vezes), sinal esse que todos repetiram também por três vezes, segurou o crucifixo juntamente com o terço bizantino com uma de suas mãos apontando para aquele trabalho, rezou a oração de São Bento e, com a outra mão, começou a aspergi-las com gotas de água benta e, prosseguindo em outras orações, entre uma e outra, dizia:
— Afasta daqui coisa ruim! Esta família não lhe pertence, pois ela é devota de São Bento e tem a proteção do Deus Divino…
— E em nome de Jesus, que os males desse trabalho retornem para as trevas de onde saiu…
Feitas essas cerimônias de “benzimento” e “exorcização”, Padre Onofre falou a todos:
— Esse trabalho é muito forte! Parece até que o meu rosário se retorceu dentro do bolso. Mas não sei dizer do que se trata, vou levá-lo daqui.
A essa altura, as velas já haviam se apagado, tamanha a “chuva” de água benta borrifada com o aspersório sobre elas. Com um pedaço de jornal apanhou aquele feixe de velas molhadas e o colocou dentro de uma caixa de papelão e partiram dali com o Padre Onofre dizendo:
— Vou levá-las do jeito que estão ao irmão Gilberto, fiel da nossa igreja que é ex-mestre de santo e agora está convertido ao catolicismo, para que ele dê uma olhada nelas e analise que tipo de trabalho é esse, e o que deveremos fazer para desvencilhar de uma possível maldição.
E então, partiram todos para a casa do irmão Gilberto e, tendo aquele ex- mestre de santo analisado o trabalho realizado com as velas vermelhas, explicou:
— Meus irmãos…, isto é trabalho pesado! Estas velas foram ofertadas ao Mestre das Encruzilhadas, para que haja muita infelicidade no seio da família. – e continuou em sua tese sobre aquele ritual:
— Para desmanchar esse trabalho, a família necessita de jogar as velas em algum rio para que a correnteza leve para bem longe todo mal desejado a vocês e a casa.
Assim, seguindo orientação do irmão Gilberto, naquela mesma noite, Bentinho, Dona Zica e Cesinha, acompanhados do Padre Onofre e do Padre Maurício, foram até as margens de um rio nas imediações da cidade e, de cima de uma ponte, arremessaram as velas em suas correntezas, fizeram alguns sinais da cruz ainda em cima da ponte e, em seguida, retornaram para a casa da família.
Depois de tudo isso, antes que os Padres retornassem à casa paroquial, benzeram por completo a residência de Bentinho, bem como a todos de sua família, e após um breve sermão, passou as seguintes recomendações:
— Meus filhos!… É bom que vocês rezem durante uma semana, todas as noites o Credo, mais vinte Padres-Nossos e vinte Ave-Marias, e no próximo final de semana, estarei aqui para rezarmos um terço.
Feitas essas recomendações, aqueles presbíteros partiram de volta à casa sacerdotal, e a família enfim, pode entrar na casa para as suas rotinas normais, ou melhor, para a inicialização das preces recomendadas pelo Padre Onofre. E com tudo isso, Cesinha acabou nem saindo naquela noite.
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Enquanto isso, na área de entrada de uma residência nas proximidades da casa de Bentinho, escondidos atrás de uma parede de tijolos vazados, os jovens Marinho, Zezé e Luís Cláudio, amigos de Cesinha, observavam o movimento com sorrisos e expressões de receios e conversavam baixinho entre eles:
— Caramba meu?!!!… Os pais do Cesinha acreditaram!… Eu não falei que essa brincadeira não ia dar certo…! – dizia Luís Cláudio meio que assustado pela repercussão do fato.
— É mesmo! – concordou Marinho. Eu bem que falei ao Zezé pra gente não pegar aquelas velas jogadas na lata de lixo do cemitério.
— Mas é que o Luís Cláudio falou que iria derretê-las para vender a parafina. – justificava Zezé.
— Até chamaram os Padres para desmanchar o trabalho…! Há, há, há… – sorria Marinho. Mas quando se lembrou da seriedade na qual havia rumado aquela brincadeira, preocupado perguntou:
— E agora? O que será que vai acontecer?…
— O que vai acontecer eu não sei… – respondeu Zezé. A única coisa que sei é que teremos que guardar segredo disso. Se descobrirem que foi a gente que armou essa brincadeira, o Cesinha nunca mais vai querer nossas amizades.
— É verdade! – falou Luís Cláudio. Se descobrirem que tudo não passou de uma brincadeira, eu acho que o seu Bentinho e principalmente a Dona Zica chamam até a polícia para nos prender.
E assim, entre uns e outros comentários, Marinho e Luís Cláudio, agora apreensivos, decidiram ir embora, de fininho, para suas casas, enquanto Zezé, que já estava em sua própria casa, sem fazer maior alarde, entrou e foi direto para o seu quarto deitar-se bem quietinho…
Bentinho, Dona Zica e Cesinha nunca ficaram sabendo que aquelas velas vermelhas deixadas acesas no jardim de suas casas, jamais fora trabalho de feitiço, e sim uma brincadeira dos também adolescentes, Marinho, Luís Cláudio e Zezé, colegas de Cezinha, e que até hoje em face de repercussão, continua em segredo.