TREM DE PASSAGEIROS
Por mais que eu tento, não consigo tirar da cabeça aquelas viagens de trens que fazia de Araraquara a São Paulo quando ainda era garoto. Lembro-me dos preparativos no dia anterior àquelas viagens à Capital. Ajudava minha mãe a preparar as malas de viagem. Ela se preocupava com todos os detalhes. As coisas tinham que ser arrumadas com antecedência, ou seja, na véspera, geralmente na parte da tarde: roupas, sapatos, lanches…
Ah! Os lanches!… Não podiam faltar os pães recheados com mortadela (Que delícia!) e nem as laranjas previamente descascadas e parcialmente partidas ao meio para facilitar na hora de chupá-las durante o passeio. Sim, um passeio! O percurso pela linha férrea era fantástico! Você podia ver de perto a natureza, os gados nos pastos por sítios e fazendas, os rios, as serras, as casinhas caboclas emolduradas na janelinha do trem, enfeitando ainda mais as lindas paisagens daquele trajeto pelos belos campos do interior paulista.
O trem “nascia” em Araraquara. Saía às sete da manhã em ponto. Era coisa de primeiro mundo. Aliás, nos Estados Unidos e na Europa esses trens de passageiros são muitos valorizados pelo governo e sua população. No Brasil, infelizmente os nossos falsos políticos conseguiram acabar com os trens de passageiros. Também né… Uma viagem dessas era tão barata e, desta forma, qual o “lucro para o governo?” E a população…? Essa…!? Coitada! Não teve sequer chance de escolher. Teve mesmo é que ficar com as altas taxas e o número cada vez maior dos pontos de pedágios e da “indústria” das multas pelas estradas paulistas. Num país “democrático” como o nosso, ao menos poderia ter tido um plebiscito decidindo-se ou não pela permanência desse valoroso meio de transporte.
Mas tudo bem, vamos voltar a nossa viagem de trem a qual servia tanto para passeios quanto a negócios.
Ainda lembro aquele agente ferroviário, o “guarda-trem”, com uniforme azul-ferrete, tipo terno, camisa branca por baixo, quepe e gravata, sinalizando com uma bandeirinha verde-musgo e um breve apito, a autorização para que o maquinista pudesse acionar a máquina de ferro para iniciar viagem. E após este sinal, e do breve adeus de meu pai que sempre nos acompanhava até a plataforma, a composição partia lentamente emitindo um longo apito que ecoava por quase toda a cidade.
Viajava sempre de primeira-classe, ora nos carros pullman standard, ora nos carros de aço inox. As malas eram acondicionadas em um maleiro de metal fixado ao teto do trem, cuja extensão ia de fora a fora dos dois lados internos de cada vagão e por sobre as poltronas. As poltronas além de confortáveis eram altas e reclináveis.
A cada estação que se aproximava, aquele mesmo “guarda-trem”, passava anunciando pelos vagões, em voz alta e em bom tom, o nome da cidade que estava chegando, isso para que as pessoas ficassem informadas quanto à próxima parada.
Eu já sabia de cor a sequência das cidades, e até quanto tempo o trem iria ficar parado em cada uma de suas estações: Saudosas passagens e suas maravilhosas paradas: Ibaté; São Carlos; Itirapina; Rio Claro; Santa Gertrudes; Cordeirópolis; Limeira; Americana; Nova Odessa; Sumaré; Campinas; Valinhos; Vinhedo; Louveira; Jundiaí; Várzea Paulista; Campo Limpo… Era interessante ver as pessoas com suas diversas vestimentas e maneiras, e os diferentes tipos que embarcavam e desciam a cada estação.
Não posso me esquecer daquela outra função do “guarda-trem”, que era o de picotar os bilhetes das passagens, verificando sua validade e qual a cidade onde cada passageiro deveria descer. Ah, e tinha também aquele outro agente ferroviário que vez ou outra passava empurrando um carrinho com refrigerantes (E eram guaranás da marca antártica com garrafinhas de vidro!) e lanches com frios, tipo bauru, alternando suas passagens vendendo jornais e revistas. Até me recordo de algumas daquelas revistas: Contigo; Manchete; O Cruzeiro…; as fotonovelas: Capricho; Grande Hotel; Sétimo Céu…
Outra passagem saudosa era a hora de saborearmos aqueles lanches trazidos de casa. E isso se dava mais ou menos no meio do percurso, nas proximidades de Cordeirópolis…, Limeira…, por ali. Assim que passava novamente o carrinho dos refrigerantes e lanches, minha mãe comprava os guaranás e a gente podia até escolher as cores das listras dos canudinhos dos quais utilizaríamos para tomá-los.
Independente dos lanches trazidos de casa, às vezes pedia para minha mãe comprar aquele lanche (pãozinho recheado apenas com fatias de queijo), que inclusive até os dias de hoje quando os saboreio em conjunto com o guaraná antártica, lembro o sabor daqueles dias felizes.
Para quem não quisesse lanchar durante a viagem e preferisse um “almocinho”, aquele mesmo agente do carrinho, por volta das nove horas, passava perguntado e anotando num bloquinho de papel, para fins de previsão, a quantidade de passageiros que iriam almoçar, almoço esse a ser servido no carro-restaurante do trem. Mais ou menos umas onze e meia, o agente voltava avisando àqueles passageiros que eles já poderiam se dirigir até o “refeitório” que o almoço estava pronto.
E assim a viagem ia prosseguindo, com o trem trilhando seu destino emoldurado entre cidades e vilas, entre serras e fazendas e entre rios e vales.
Gostava muito quando passava pelo túnel de Botujuru, entre os municípios de Campo Limpo Paulista e Francisco Morato. Ficava “noite” e as luzes do interior do trem tinham que ser acesas. E era uma pena quando o trem terminava de passar pelo túnel, pois se sabia que a viagem já estava chegando ao seu final.
Mas para consolar, ainda restavam algumas estações até chegar em São Paulo, as quais também eram motivos de alegria de se ver passar: Francisco Morato; Baltazar Fidélis; Franco da Rocha; Caieiras… E já no município de São Paulo: Perus; Jaraguá; Vila Clarisse; Pirituba; Piqueri; Lapa; Água Branca; Matarazzo; Barra Funda…
E nessas passagens, ia curtindo cada plataforma em contraste com as chaminés fumegantes em suas proximidades, bem como os toques das sirenes das fábricas anunciando aos seus operários a hora do almoço, e isso me abria o apetite ao tentar saber qual o prato do dia que minha tia estaria preparando para a nossa chegada.
Ao meio-dia e meia em ponto (quando não ocorria algum atraso), o trem chegava em São Paulo onde desembarcávamos na Estação da Luz, olhando e procurando ansiosos por entre sua imponente arquitetura, a figura do meu tio que sempre nos esperava…
Atualmente, quando assisto a filmes americanos ou europeus, e vejo em muitos deles o seu povo viajando de trens, a passeio ou a negócios, fico pensando até quanto tempo ainda nosso governo haverá de ter esse “preconceito” de investir em ferrovias, a fim de poder baratear o transporte para o nosso povo, em detrimento aos altíssimos valores dos combustíveis, multas e pedágios que nós, brasileiros, temos que hoje suportar sem ao menos ter tido a chance de ter escolhido, como um país “democrático” em que vivemos, analisando-se a viabilidade econômico-financeira, qual o nosso preferido meio de transporte.