TIO ELIAS
Tlin-tlin! Tlin-tlin!
E lá ia eu a sair correndo de dentro de casa ou dos fundos do quintal para abrir o portão para o meu Tio Elias entrar. O tilintar da “buzina” de sua bicicleta era inconfundível: “tlin-tlin”. E aquele seu ato de chegar de frente à minha casa e tocar aquela “buzina” , assim como as presilhas que usava nas barras de sua calça, para que pudesse pedalar livremente sem que as pernas da calça viessem a se enroscar na catraca da bicicleta, eram suas marcas registradas.
E eu não resistia à sua chegada…:
“— O Tio Elias taí! O Tio Elias chegou!” – gritava eu para minha mãe ouvir que o seu irmão tinha chegado, em meio a minha correria para recebê-lo e pedir a sua benção. E ele, assim que acomodava a bicicleta na área de entrada de casa, ia logo esticando uma de suas mãos para que eu a beijasse a fim de que aquela formalidade da benção fosse traduzida em gesto, tradicional gesto de pedir a benção naqueles tempos de minha infância. E após isso, depois dos “cumprimentos”, ele sempre contava alguma história que me prendia ainda mais à sua presença.
E o Tio Elias não parava. Depois que se aposentou, pegava sua bicicleta e pedalava por toda cidade, realizando suas visitas… E também andava a pedalar pela cidade, atrás de consertar guarda-chuvas e sombrinhas para não ficar parado e, com isso, ganhar um dinheirinho extra com essa atividade.
Lembro-me muito bem da caixinha de madeira amarrada na garupa de sua bicicleta, na qual ele a utilizava para acondicionar os guarda-chuvas e sombrinhas para o transporte, tanto para entrega após tê-los consertados, quanto para os ainda quebrados que levava para sua casa, onde efetuava os devidos reparos, para posteriormente devolvê-los – quase que novos – aos seus donos.
Infelizmente isso tudo fora passagem de criança. Tudo ficou na magia da infância. E o tempo que tudo corrói, impiedoso, também deixou para trás aqueles bons tempos.
A gente cresce… e a vida exige mudanças. E as mudanças são inevitáveis. Para mim, as mudanças vieram e me levaram para longe daquele interior, me fazendo firmar na capital do Estado, em São Paulo, onde estou até os dias de hoje.
E com essas mudanças, inevitável também é o distanciamento daquelas pessoas que tanto amamos quando somos crianças. O tempo vai passando e deixando para trás uma grande lacuna temporal no convívio com entes queridos. É triste, mas é assim, e sem querer acabamos por “ter que esquecer” muitas daquelas pessoas queridas e que estavam sempre presentes em nossas vidas no passado.
Passaram-se muitos anos. Poucas foram às vezes que voltei a ver o meu Tio Elias, pois as poucas ocasiões que voltava para Araraquara, na correria ou na distração da minha mente, acabava por esquecer ou até mesmo não encontrava tempo para visitá-lo, porém sempre perguntava para a minha mãe se estava tudo bem com o Tio. E ela me respondia que sim, que estava tudo bem com o Tio Elias, e que ele continuava com a sua bicicleta pela cidade a recolher os “seus” guarda-chuvas e sombrinhas para consertá-los. Inclusive, em algumas dessas minhas idas à Araraquara, tive em raras oportunidades o grande prazer de novamente ouvir o “tlim-tlim” da campainha de sua bicicleta de frente à minha velha casa, e lá estava ele, meu Tio Elias, com sua bicicleta, no rotineiro recolhe e entrega de seus guarda-chuvas e sombrinhas. Ah, minha mãe era assídua freguesa do meu Tio. Volta e meia tinha alguma sombrinha ou até mesmo o guarda-chuva do meu pai, com o cabo ou alguma vareta quebrada, e ela ficava só no aguardo do Tio Elias passar para entregá-los para os devidos consertos.
Não sei precisar qual teria sido a última vez que vi o Tio Elias e muito menos qual teria sido o último dia que lhe pedi sua benção. Só sei que fora há muitos anos… Puxa! Que vida?!…
E que vida!… Pois depois de muito tempo sem ver o Tio Elias, me chega a triste notícia de que ele havia morrido…
Fiquei arrasado! E mais arrasado pelo fato dessa notícia ter chegado ao meu conhecimento em cima da hora, ou seja, não tive tempo hábil para me deslocar de São Paulo e chegar para o velório a fim de ainda conseguir realizar aquela que seria a minha última despedida do Tio Elias.
Confesso que naquela semana, sequer consegui trabalhar direito. Muitas vezes em meus afazeres, profissionais ou pessoais, perdia a concentração e me via a lembrar daqueles tempos em que corria a abrir o portão ao percebê-lo chegar após ouvir o trinar da “buzina” de sua bicicleta.
E isso tudo me incomodou muito. Contudo, tinha que procurar esquecer e seguir em frente, porque a vida de hoje nos atropela até se pararmos a meio-fio. E assim, aquela semana foi se passando…
*****
***
*
Num determinado dia, no entanto não sei dizer ao certo quantos dias haviam se passado da morte do Tio Elias, só o que sei é que foi naquela mesma semana e era alta madrugada, estava eu envolvido num profundo sono em minha cama, quando em sonho, me vi acordando e, ainda na posição de deitado, ao abrir os olhos, instintivamente olhei em direção à porta do meu quarto, a qual se encontrava entreaberta, e pude perceber ainda do lado de fora uma suave claridade, algo como um discreto espectro, e sentia uma branda e indefinida brisa vinda daquela direção. E sem que tivesse qualquer tempo de tentar imaginar o que poderia ser aquela estranha, porém serena visão, eis que entra pela porta o meu Tio Elias, exatamente como da última vez que eu o havia visto em vida, sorridente e sempre simpático…
É bom que eu diga que sempre tive muito medo dessas coisas de “espírito”, dessas coisas do “além”… Não gosto nem de pensar! Procuro não acreditar, porém contra fatos não há argumentos… E então, ao ver a figura do meu querido Tio Elias a entrar pela porta entreaberta do meu quarto, de súbito, levantei-me e fui ao seu encontro.
Ao me aproximar dele, e com o “peso” da minha consciência, já fui logo lhe falando:
— Tio!… Ainda bem que o senhor veio!
E continuei:
— Me desculpe por não ter ido me despedir do senhor…! Não deu tempo!
E sem deixar que eu continuasse a me justificar, ele, de braços abertos, me respondeu:
— Eu sei disso! E é por isso que estou aqui! Para que você possa despedir-se de mim, e eu de você!
Ao ouvir isso, abracei-o fortemente e chorei muito em seus braços…
E sem que se esperasse, como num passe de mágica, me vi acordado e deitado no mesmo lugar em que estava, e ainda olhando em direção à porta do meu quarto, senti uma sensação que nunca na vida havia sentido, uma sensação de alívio, de prazer, humanamente indescritível. Sentia-me leve e num elevado estado de felicidade.
E antes que o sono pudesse novamente me dominar, e agora estando eu olhando para o alto, agradeci falando em voz baixa:
“— Puxa Tio! Obrigado e vá com Deus!”