O PARTO
Aquele dia havia transcorrido tranquilamente na ronda daqueles policiais militares, jovens patrulheiros. E naquela fria noite de junho do ano de 1984, próximo ao encerramento de mais um patrulhamento, contavam os minutos para o retorno à Base para a passagem do serviço a outros companheiros.
Patrulhavam pela periferia da cidade de São Paulo, deslocando-se vagarosamente com a viatura por uma rua erma e escura, onde apenas podia-se perceber a claridade oscilando nas janelas das salas, oriundas das imagens refletidas dos aparelhos televisivos pelo interior das casas. Em dado momento, o soldado Oliveira, alertou ao motorista, o soldado Martins, sobre uma senhora vindo correndo em direção àquela viatura, acenando e gesticulando bastante para que parassem.
Àquela altura, a viatura que se encontrava em baixa velocidade e com os faróis altos, iluminava por completo uma senhora com vestido claro e longo, cujo semblante refletia desespero por socorro, porém ao mesmo tempo, o alívio daquele encontro, traduzia-se num discreto sorriso, atenuando um pouco a agonia de sua face. Acenava, gesticulava e gritava por atenção. Surpresos, Martins e Oliveira trocaram olhares, como que querendo dizer um ao outro: “Estranho, o que será a estas horas…?”. No entanto, não pronunciaram qualquer palavra naquele instante.
Perguntavam-se o que poderia estar acontecendo com aquela senhora sozinha e desesperada bem no meio da rua, naquele horário e lugar? Seus olhares de patrulheiros insinuavam que algo grave poderia estar acontecendo. Teriam que se aproximar daquela senhora com a máxima prudência, pois conforme “pintava-se” aquela situação, ela poderia perfeitamente estar sendo vítima de uma perseguição por assaltante ou até mesmo por um estuprador. E este ou aquele na certa estaria nas proximidades de onde se encontravam.
Pararam a viatura ao lado daquela senhora e pediram-na para que se acalmasse e contasse o que estava acontecendo, uma vez que a partir daquele momento ela estaria segura. A tal senhora sequer deu ouvidos às orientações dos patrulheiros e, afobada, clamando ainda por socorro, pedia para que eles fossem urgentemente para a sua casa, na qual sua nora encontrava-se em trabalho de parto precisando ser socorrida, e que o seu filho, marido da parturiente, encontrava-se em outra cidade trabalhando, não estando presente para poder prestar o devido socorro à sua esposa. Apontou a direção da casa, próxima à rua em que estavam, explicando que era só virar na primeira à direita, e que ficava bem no meio do quarteirão, tendo os patrulheiros se deslocados rapidamente com a viatura para o local indicado.
Lá chegando, puderam observar um grande número de pessoas do lado de fora da casa, na calçada, como que ali também estivessem esperando pelo socorro daqueles jovens. Para os patrulheiros, aquela circunstância se conduziria sem problemas, pois pensavam eles em socorrer a gestante até o Pronto Socorro mais próximo, naquele mesmo bairro, e lá a entregariam aos cuidados médicos, uma vez que, pela simplicidade verificada nas pessoas e nas casas, aquela família, bem como aquelas pessoas da vizinhança, dificilmente possuiria automóveis, razão pela qual, ansiosas aguardavam o socorro daquela viatura.
Desceram da viatura com posturas altivas e confiantes. É que apesar de suas poucas idades, não poderiam deixar passar que estavam nervosos. Tinham que transmitir segurança às pessoas, demonstrar suas “experiências” naquela questão… Era a primeira vez que ambos atendiam uma ocorrência de tal natureza…
Entretanto nem tudo era como eles pensavam. No momento em que desceram da viatura e indagavam às pessoas sobre o estado da gestante, perguntando principalmente qual a casa em que ela se encontrava, para que pudessem vê-la e prestar-lhe assistência, chega correndo a solicitante, ou seja, aquela senhora, sogra da gestante, a qual veio a pé após o pedido de socorro aos patrulheiros, e, exaltada e batendo palmas, pede para que todos que estavam ali (vizinhos e curiosos) se tranquilizarem, que agora tudo estava bem, que tudo estava resolvido, pois conhecia muito bem aqueles jovens policiais, os quais se tratavam de profissionais muitos experientes e acostumados com a realização de partos, dizendo em alto tom que aqueles jovens tinham “parte com Deus”…
Naquele momento, Oliveira percebeu que aquela circunstância já não era tão “sem problemas” assim. Ambos nunca haviam visto aquela senhora antes, e entre uns e outros sussurros daquelas pessoas, ouviu claramente alguém dizer que a bolsa d’água havia se rompido e a gestante acabara de entrar em trabalho de parto… Pronto!… Estava gerada mais ainda a intranquilidade para aqueles patrulheiros. E como eles não podiam naquela ocasião demonstrar qualquer sinal de fragilidade, discretamente Oliveira evitou que suas pernas bambeassem sem controle. Preferiu estar surdo naquela hora, mas se recompôs sem que ninguém percebesse. Ergueu a cabeça e “seguro de si”, partiu juntamente com Martins em direção à entrada da casa.
Mas… E agora? O que fazer?… Os patrulheiros nunca haviam se deparado com uma ocorrência dessa magnitude. Tinham pouca experiência no serviço, ou melhor, não tinham ainda qualquer experiência nas suas atividades de policiais, e em hipótese alguma, poderiam deixar que isso transparecesse àquelas pessoas, principalmente para aquela pobre senhora, que simples e humilde, até já havia feito positivamente a “propaganda” dos patrulheiros “médicos”.
A casa onde estava a gestante, ficava num terreno no qual se localizavam várias outras casas, uma espécie de cortiço, e para piorar um pouco mais a situação, para ter acesso até ela, deveriam passar por um corredor estreito até os fundos, uma vez que se tratava de uma das últimas casas construídas naquele terreno. Os patrulheiros pediram licença às pessoas, que naquelas alturas, já se formava em uma grande aglomeração, visto que, com a presença da viatura policial e a presença de inúmeras pessoas na calçada, avolumava-se em mais e mais curiosos. E para aumentar ainda mais as adrenalinas e as “emoções” dos patrulheiros, no momento em que estes passavam pelas pessoas, ainda ouviram a seguinte indagação:
“— Nossa, mas eles são tão novinhos…!”
Com isso, os suores até então retraídos com muitos esforços, começavam-lhes a escorrer pelos rostos. E agora, mais do que nunca, teriam que se manterem mais fortes, não poderiam se sucumbir àquela provação.
Mesmo assim, ainda restara uma pequena esperança de que, aquele fato da gestante “ter entrado em trabalho de parto”, pudesse ser especulação… Um alarme falso. Nada disso! Quando os patrulheiros entraram na residência e foram até o quarto em que estava a gestante, constataram de verdade que aquela mulher encontrava-se mesmo em avançado trabalho de parto, estando ela gemendo de dores sobre uma cama, pedindo pelo amor de Deus para que lhe ajudassem. Assim que notou a presença daqueles policiais, de imediato, gotas de lágrimas escorreram de seus olhos indo perderem-se em seus lábios e dentes, na mistura emocionada de seu choro e sorriso, por sentir que sua salvação tinha chegado.
Nesse momento, Martins, o mais “experiente”, tomado de grande iniciativa, o que é peculiar a esses policiais, e lembrando as lições de primeiros socorros recebidas no período da escola de polícia, pediu para que aquela senhora (sogra da gestante) imediatamente colocasse uma panela com água para ferver, possivelmente para que fosse desinfetado algum material que pudesse ser utilizado na realização do parto, pedindo também para que se providenciasse álcool para limpar e desinfetar suas mãos, o que foram feitos.
Todavia, como o trabalho de parto já estava em estado bastante avançado (a bolsa d’água já tinha se rompido há algum tempo), a obra divina iniciou-se, aquela mãe começou “a dar à luz”… e a criança começou a aparecer… Nessa hora, como que por intuições vindas do céu, os patrulheiros apoiaram com suas mãos o nascimento daquela criança, ao mesmo tempo em que Oliveira, com palavras de conforto e carinho, tentava atenuar as dores de parto daquela mãe.
Poucos minutos passaram-se, para enfim, uma linda criança nascer. Após, fez-se alguns segundos de silêncio dentro do quarto. A criança ao abrigo dos braços de Martins tinha seu pequeno rostinho limpo por uma toalha pelas mãos desse patrulheiro… Podia-se notar o olhar brilhando da mãe em direção à criança que ainda estava em silêncio… Ouvia-se apenas o ofegar da mãe…
Martins e Oliveira estavam com suas fardas todas manchadas de sangue… Seus rostos estavam suados pela tensão da responsabilidade daquele momento e pela emoção de presenciar a primeira vez a vida nascer… A vida acontecer.
Mas, e agora?… Com esse quadro, qual seria o próximo passo? O que deveriam os jovens patrulheiros fazer ante ao silêncio daquela criança? Não olhavam para os lados, mas sabiam que as pessoas mais próximas da família estavam ali, confiantes naqueles heróis. Um frio na barriga corroeu Oliveira. Tudo aquilo pra nada? Meu Deus! – pensava Oliveira. Por que esse silêncio?… Será que a criança estava respirando? Teria nascido com vida?
E então, após um lapso de segundos, um pequeno choro quebra o silêncio daquele quarto. E com essa quebra de silêncio, todos ali presentes confraternizaram-se com o nascimento de uma linda menina. Contudo, o serviço de “obstetrícia” tinha que continuar, não podia parar. Martins pede a Oliveira para que se providenciem uma tesoura, a fim de que pudesse cortar o cordão umbilical. Só que infelizmente a tesoura que arrumaram, estava toda enferrujada e aparentemente sem corte, não podendo de jeito nenhum ser utilizado para aquela finalidade.
Assim, os patrulheiros decidiram não mais cortar aquele cordão umbilical. Amarraram-no em dois pontos com barbante esterilizado pelo álcool, e após enrolaram a mãe em um lençol limpo, juntamente com a criança e carregaram-nas com muito sacrifício até a viatura, pois tiveram que retornar por aquele corredor estreito e ainda ter que abrir espaço entre as inúmeras pessoas (curiosos) pelo caminho.
Com muito cuidado, colocaram a mãe e a criança no banco traseiro da viatura, com a pequena menininha sobre o calor do colo materno, tendo sua sogra sentada ao lado acompanhando. Acionaram a sirene e partiram velozmente em direção ao Pronto Socorro.
De imediato, Oliveira utilizando-se do rádio da viatura, avisou a Base que estavam a caminho do Pronto Socorro no auxílio àquela mãe e criança. Ao chegarem ao Pronto Socorro, puderam verificar que médicos e enfermeiros já os esperavam com a maca, prontos para a imediata assistência à mãe e à criança, pois a Base já havia lhes informado.
As pessoas que naquela noite encontravam-se na recepção do Pronto Socorro, tanto os pacientes que ansiavam por atendimento quanto grande parte de seus funcionários, parabenizaram aqueles heróis. Martins e Oliveira após abraçarem-se e de encerrarem aquela ocorrência, retornaram à Base, onde outros dois patrulheiros os aguardavam para a passagem do serviço, porém antes que estes viessem lhes parabenizar pelo acontecido, Oliveira adiantou-se, dizendo-lhes:
— Deus lhes abençoem meus companheiros, por tantas vidas que salvaram. Parabéns pelos tantos partos que em suas carreiras realizaram… E acredite, nesta noite pude sentir que nós patrulheiros temos verdadeiramente “parte com Deus”.