Joana que não é D’arc
Joana, mulher formosa e guerreira,
Santa de casa – forte camponesa,
nem loira, nem ruiva, nem negra,
apenas morena. Aos dezenove foi
entregue em casamento para o seu
arranjado marido, dono e Senhor.
Dezenove, a idade de sua “morte”
em vida: “Donzela de Orléans”.
Boca?!… Para que boca
se seu fado é a modéstia caseira…
Às cinco da manhã já está na lida
com o chambre de seda e chinela.
Chaleira de ferro numa das mãos
e um lenço bege envolto na cabeça.
E o aroma do café a flutuar pelos
inúmeros cômodos do casarão,
faz despertar seu “patrão” Senhor,
para mais um dia em sua fazenda.
Mais um dia de chicote e rebenque
sobre sua sela e sua montada alazã.
E na colheita dos frutos da terra,
o que se vê, são olhos arregalados
pelo temor de sua presença em vã,
pelos que dão seus suores e sangue,
no trabalho “escravo” do arado,
na mira dum capanga bem armado.
E as onze em ponto a comida já está
bem quentinha e pronta sobre a mesa.
Tudo para que o “Senhorzinho” não
se zangue e não cometa má surpresa.
E Joana jamais se atreveu a atrasar
seu almoço. Pelo contrário, como
verdadeira esposa faz questão que
seu Senhorzinho tenha até sobremesa.
E ao final de cada refeição, Joana
dirige-se até uma santinha iluminada,
e em sua fé, de joelhos e em oração,
ajeita por detrás da imagem de sua
padroeira Santa Catarina, protegida
numa capelinha num pequeno altar,
sobre uma toalhinha branca de renda,
um pequeno frasco com água benta.
E antes de montar o crioulo à tarde
na contínua vigília de suas posses,
o Senhor dá um trago na aguardente,
calça seu par de botas de canos altos,
apanha seus apetrechos e, de porre,
para não perder o hábito e o poder,
deixa mais uma vez que Joana venha
a conhecer a força de seu chicote.
Mas Joana que não é D’arc, humilde
e calada, começa a preparar o jantar,
pois seu Senhor as dezoito, já está de
volta para comer, beber e descansar.
E outra vez de fogo, antes do apagar
da noite, as mãos pesadas do Senhor,
deixa a pele da mártir Joana sangrada
e queimada na bravura de seu açoite…
Um dia uma batida desesperada em
sua porta! É o vil capataz da fazenda
perguntando pelo seu Senhor patrão,
que há uma semana não perambula
na propriedade com seu cavalo alazão.
Com o semblante sem expressão e tal,
Joana diz ao capataz, que o seu Senhor
partiu dias atrás em direção ao cafezal.
E Joana continuou com seus afazeres
como nada mais houvesse acontecido.
Pois é mulher valente até na ausência
de seu amado Senhor… mas submissa.
E na esperança de um dia rever o seu
Senhorzinho procurou até pelo Padre
da paróquia localizada na vizinhança,
para pedir que lhe rezasse uma missa.
Passou a visitar diariamente a pequena
capela existente na fazenda, ao lado do
ribeirão da morte para rezar. Mas já de
absoluto luto! Sempre com um vestido
preto bem maior que o seu manequim.
E ainda com um rosário e mais isto…
Um cordão de ouro no pescoço com a
cruz de Cristo! E muitos dias fora assim…
Até terminar de “desovar” pelas águas
turvas do ribeirão, o último saco plástico
sob seu vestido preto, e sem sentir dor,
contendo o rebenque, o chicote e as mãos…
Os últimos restos de seu “amado” Senhor!
Joana em sua santidade, jamais admitiria
que sua “guerra”, com sofrimentos tantos,
viesse a vir durar por longos cem anos…
De volta a casa, despiu-se de todo o luto,
apanhou um frasco atrás de sua santinha
e jogou nas águas frias da pia da cozinha,
o restante do veneno que ainda continha.