CATADOR DE PAPELÃO
João Carlos era um daqueles homens dignos de serem seguidos como exemplo. Cidadão honesto, inteligente, trabalhador, um ótimo esposo e um ótimo pai de família. Sempre muito solidário para com as pessoas e, sobretudo para aquelas pessoas necessitadas e desprovidas de recursos financeiros, sem nenhuma condição de fazer parte de nossa sociedade capitalista.
E ainda mais, João Carlos era possuidor de um excelente emprego numa conceituada empresa multinacional localizada na cidade de São Paulo, recebendo um alto salário pelo seu cargo de gerente de produção, inclusive era um dos gerentes mais bem queridos e respeitados pelo presidente da empresa, face aos seus inúmeros cursos realizados, se tornando com isso um profissional altamente gabaritado em sua área de atuação.
Porquanto João Carlos gozava de um privilegiado padrão de vida junto à sua família, dando-lhes todos os recursos necessários para se viver bem: bons estudos; uma linda casa; lazer e, o mais importante, muito carinho à sua esposa e aos seus filhos.
Mesmo usufruindo de um bom nível de vida, João Carlos jamais perdera seus sentimentos de solidariedade aos pobres, sentimentos esses que lhe eram inerentes ao berço recebido, apesar de ter crescido numa família bastante humilde.
Só para se ter uma ideia de como era o perfil de João Carlos, vou contar uma pequena passagem em sua vida:
“… Numa certa manhã de sábado, quando estava desfrutando de suas horas de folga, percebeu um catador de papelão vasculhando a lixeira defronte à sua casa. Vendo isso, saiu até a calçada e se pôs a conversar com aquele catador:
− Bom dia senhor! Está produtivo o dia hoje?
E aquele catador, sem levantar a cabeça e continuando a vasculhar atrás de separar os papelões ora desprezados naquela lixeira, surpreso pelo “Bom dia senhor!”, retribuiu:
− Bom dia doutor!
Dizendo isso, continuou na sua árdua missão de coletar papelão jogado em meio aos sacos de lixo à espera pelo serviço público de coleta.
E João Carlos continuou:
− Esse serviço não é nada fácil não é mesmo? Você sabe que você exerce uma função muito importante na cidade, pois com todos esses papéis e papelões coletados para uma futura reciclagem, muitas árvores são preservadas.
− Sei disso doutor! – respondeu incontinenti o catador. Mas para mim, esse material todo que coleto preserva mesmo é o alimento lá de casa, isso sim! Tenho mulher e dois filhos pequenos para cuidar…
Tendo escutado isso, João Carlos comovido falou:
− Pelo visto, o senhor começa muito cedo a trabalhar e…
Antes mesmo que João Carlos pudesse terminar a frase, aquele catador já foi respondendo:
− É verdade doutor. Às cinco e meia de toda manhã já estou na lida e vou até por volta das oito da noite.
− Nossa! Tudo isso? – perguntou surpreso João Carlos.
− Se não for assim caro doutor – disse-lhe o catador -, não consigo sustentar minha família e muito menos poupar um dinheirinho para um dia poder pagar a faculdade dos meus filhos.
− Puxa vida! – exclamou João Carlos. É isso aí, Deus que lhe ajude e lhe dê muita saúde.
− Pois é doutor! Sabe… Eu já trabalhei muito na minha vida. Mas com a instabilidade financeira existente em nosso país, acabei por ficar desempregado, e infelizmente, como não tenho estudo, tive que me virar de algum jeito, e então busquei esta alternativa, pois não suportaria ver a minha família a passar fome e ficar sem teto.
João Carlos tinha como de costume conversar com as pessoas mais humildes, mas aquela era a primeira vez que conversava com um catador de papelão, e tendo ficado muito emocionado com as palavras daquele senhor, perguntou-lhe:
− Qual é o seu nome? Afinal, estamos conversando há algum tempo aqui no portão de casa, e veja só que falta de educação a minha – falou isso dando um leve sorriso -, nem ao menos perguntei o seu nome e nem me apresentei a você! – e continuou:
− Meu nome é João Carlos e o seu?
Naquele instante, aquele catador de papelão que até então permanecera agachado separando os papelões, apesar de ter respondido às perguntas de João Carlos, levantou-se de imediato, tirou o chapéu de palha que inclusive cobria parcialmente sua testa, e colocando-o sob um dos braços preso às axilas, olhou bem nos olhos de João Carlos e disse:
− Doutor vai confessar-lhe uma coisa… Há alguns anos que venho nesse trabalho humilde pelas ruas da cidade, e até então sequer um bom dia havia recebido, e o senhor, além de puxar conversa comigo, se importa em saber o meu nome, pois pode me chamar de Toninho! Isso mesmo! Toninho Silva é assim que sempre fui chamado.
− Muito prazer então, seu Toninho! – respondeu com satisfação João Carlos. Mas agora você não precisa mais me chamar de doutor, pode me chamar só de João.
E como ainda eram apenas oito horas da manhã, João Carlos desconfiou que Toninho ainda não tivesse tomado o café matinal, e assim, mais do que depressa, tratou de oferecer-lhe café com leite e pão com manteiga, sendo que Toninho, já com certo ar de confiança na pessoa de João Carlos, aceitou sem titubear e, após ter tomado o café com o seu pãozinho quentinho (João Carlos havia passado na chapa), terminou de separar os “seus” papelões, agradecendo muito a João Carlos pela conversa e por aquele “café da manhã” e se despediu, falando:
− O senhor tem um bom coração seu João! E o senhor pode ter certeza que Deus sempre lhe recompensará abrindo portas em sua vida.
Dito isso, Toninho colocou os papelões que havia separado sobre um carrinho de madeira, o qual tinha a forma de uma pequena caçamba e que utilizava para o transporte daquele material reciclável, e num rápido e firme impulso, partiu empurrando-o na busca de mais papelões pelas ruas e calçadas da cidade…”.
E esse era o perfil de João Carlos, sempre muito bom para todos, mas principalmente para com aqueles mais humildes.
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Muitos anos se passaram desde aquela conversa que João Carlos havia trocado com o senhor Toninho, o catador de papelão, tanto que fazia também muitos anos que João Carlos tinha se mudado para o seu apartamento num bairro nobre da capital. Com isso, João Carlos nunca mais viu Toninho e tampouco conversou com qualquer outro catador de papelão em sua porta, uma vez que agora estava morando num condomínio fechado, o que por si, dificulta os contatos e relacionamentos entre as pessoas de nossa comunidade.
Assim como muitos anos se passaram, muitas coisas tinham mudado na vida do país. Com a crise financeira que o Brasil atravessava, essa veio atingir diretamente o ramo industrial do qual se ocupava João Carlos, e com isso, o corte em sua empresa foi muito grande e, inevitavelmente, o seu nome passou a fazer parte da lista dos milhões de desempregados existentes em nosso país.
E com o desemprego, João Carlos acabou por perder algumas regalias que gozava em sua vida, ou melhor, muitas regalias…, tais como: filhos passaram a estudar em escola pública; tiveram que vender os dois carros para pagar as dívidas assumidas; as parcelas do financiamento do apartamento da qual morava com a sua família, não mais foi possível pagá-las, tendo que entregá-lo ao Banco credor… E assim tiveram que ir morar de favor em casa de parentes.
Mas é bom que se diga que aquela crise não só faliu a João Carlos, mas também a vários milhares de famílias brasileiras que sofreram na pele o dissabor de ter que conviver com perdas irreparáveis em suas vidas, tendo em muitos casos, seus chefes, por desespero, se entregado ao alcoolismo ou outras coisas mais graves.
No entanto João Carlos, apesar de ter sentido o peso da crise, não se abateu. Procurava incansavelmente no dia-a-dia, um emprego que pelo menos pudesse dar o sustento digno que sua família merecia. Sabia que jamais conseguiria ganhar o que ganhava em sua antiga empresa e que jamais voltariam a viver naquele padrão em que desfrutavam.
E dessa maneira, João Carlos passou a viver por algum tempo.
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Num certo dia, próximo ao final da tarde de mais uma batalha na busca de emprego pelas ruas da cidade, João Carlos com muita dor de cabeça e fome, pois já havia andado o dia todo e poupado o dinheiro do almoço para poder pagar suas conduções, acabou por tomar um ônibus errado na volta para casa.
Porém como estava muito cansado, além de não perceber aquele engano, terminou por cochilar no interior daquele coletivo. Após aproximadamente o ônibus ter circulado por uns trinta minutos, João Carlos despertou, e sem perceber que tinha tomado um ônibus errado e que se encontrava num percurso desconhecido, avistou pela janela daquela condução, uma empresa de grande porte, com uma placa próxima à sua portaria de entrada escrita: “Precisa-se de Ajudante Geral”.
De imediato João Carlos acionou a campainha do ônibus e desceu no próximo ponto, partindo rapidamente em direção àquela empresa que já tinha ficado há alguns metros para trás.
Em lá chegando, e após se inteirar que havia uma única vaga disponível para aquela função, se colocou à disposição para o emprego e ficou aguardando numa sala de espera, em meio às dezenas de outros homens desempregados, o momento de ser chamado para que fosse avaliado numa entrevista pelo Departamento de Recursos Humanos da empresa.
Passado cerca de uma hora, finalmente João Carlos é chamado para a entrevista.
Ao adentrar à sala para onde fora chamado, notou que o entrevistador era um rapaz novo, não aparentando mais de vinte e cinco anos de idade. E assim que João Carlos passou pela porta, aquele entrevistador após dar-lhe uma boa tarde, pediu-lhe para que se sentasse e começou a fazer-lhe perguntas:
− Qual o seu nome?
− João Carlos.
− O senhor é casado? Tem família, filhos… Seu João Carlos?
João Carlos não respondeu.
E como João Carlos não tinha respondido, o entrevistador se preparou para refazer sua pergunta, mas ao olhar atentamente para o entrevistado, percebeu que João Carlos estava observando fixamente um quadro pendurado na parede daquela sala, pouco acima da cabeça daquele entrevistador, o qual tinha emoldurada a foto do busto de um senhor. Vendo que João Carlos não tirava os olhos daquele quadro e notando que ele ficara surpreendido com aquela imagem, o rapaz que o entrevistava foi logo falando:
− Esse senhor aí na foto é o meu pai. Graças a ele é que hoje temos esta empresa de aparas de papel. Papai nos criou catando papelão pela rua. Quando eu e o meu irmão terminamos nossas faculdades de química, montamos uma pequena firma de reciclagem de papéis e papelões e passamos a transformá-los em novos produtos para o mercado.
E continuou:
− Trabalhamos muito, mas valeu todo nosso esforço. Hoje estamos com duas empresas montadas, e ainda dispomos de uma fazenda no interior do Estado com uma grande área de reflorestamento. Eu tomo conta desta daqui de São Paulo e o meu irmão da filial de Suzano. Conseguimos um alto nível de qualidade na fabricação de nossos produtos e com isso vendemos para todo o Brasil e também para o mercado internacional.
Antes mesmo que aquele entrevistador continuasse em suas perguntas, João Carlos com o semblante de mais surpreso ainda, perguntou:
− Qual o nome do seu pai?
E o rapaz, agora com o corpo e o pescoço voltados parcialmente para trás, olhou para a figura daquele quadro e com um indisfarçável brilho nos olhos, orgulhosamente falou:
− Antônio da Silva! Mas todos só o conheciam por seu Toninho, o catador de papelão.
Neste instante, João Carlos teve um momento de sobressalto, e com os olhos lacrimejados de emoção pelo o que estava presenciando, disse em tom de satisfação:
− Eu conheço o seu pai!!!
E após João Carlos ter relatado toda a história de contato que havia tido com o pai daquele rapaz entrevistador, que naquele ínterim ficou sabendo chamar-se André, e também contado sobre a sua atual condição de vida, André com os olhos também cobertos de lágrimas e muito emocionado disse:
− Como este mundo é pequeno seu João Carlos. O senhor não sabe o quanto o meu pai falou desse dia em que conversou com o senhor na porta de sua casa. Desde quando papai havia perdido o emprego, e a gente era muito pequeno, mamãe me falou que nunca mais tinha visto papai tão feliz. O senhor não pode imaginar o quanto o senhor fez bem ao meu pai naquele dia.
E dizendo isso, André continuou a falar:
− Infelizmente papai e mamãe não estão mais entre nós. Faleceram há dois anos.
− Sinto muito… – lamentou João Carlos.
− Obrigado… – agradeceu André.
E após alguns segundos de silêncio pela comoção dos acontecimentos ali revelados, André pôs-se a continuar aquela entrevista:
− E então seu João Carlos, o senhor está mesmo interessado na vaga de Auxiliar de Ajudante Geral?
− Com certeza! – afirmou João Carlos. Eu preciso muito desse emprego, pois como disse tenho uma família para sustentar.
E André com a voz ponderada respondeu:
− Puxa vida… Infelizmente seu João Carlos a vaga não está mais disponível.
Ouvindo isso, e não entendendo o motivo daquela “dispensa”, João Carlos cabisbaixo agradeceu a André, desejando-lhe muita sorte, e levantou-se da cadeira e partiu em direção à porta a fim de se retirar daquela sala.
Quando estava se aproximando da porta de saída, André lhe chamou e falou:
− Seu João Carlos, eu falei que a vaga de Auxiliar de Ajudante Geral não está mais disponível… Para o senhor, pois tenho algo melhor para lhe propor, afinal o senhor pode ter certeza de que a vida não lhe trouxe aqui por engano. A vida nunca trabalha “por acaso”; ela às vezes fecha portas, mas sempre abre outras maiores quanto o tamanho da porta do coração de quem merece. Portanto, se o senhor aceitar, é claro, estou precisando de um gerente de produção para a nossa empresa de Suzano, pois o atual gerente daquela filial está se aposentando, e posso lhe garantir que o salário é um dos mais altos de nossas empresas. O senhor aceita?
Não tendo palavras para se expressar, João Carlos começou a chorar e passou a agradecer a Deus por aquele momento. Por estar tendo a oportunidade de estar provando naquele instante que vale à pena ser bom, independente de qualquer situação em que possamos nos encontrar na vida, e principalmente quando estivermos por cima e sentirmos a falsa sensação que jamais precisaremos de ninguém, pois é aí que vem a provação do nosso caráter.
E assim, logicamente que João Carlos aceitou o cargo, colocando em prática todo o seu amplo conhecimento profissional e técnico naquele seu novo emprego, tanto que a empresa dos filhos do seu Antônio Silva, o Toninho catador de papelão, já conta com mais uma filial pelo interior do Estado.