À PROCURA DE MARIDO
Cidinha andava desconsolada. Já havia tentado de tudo. Experimentado todas as simpatias e utilizado todo o seu repertório de rezas e orações. Havia queimado quilômetros de velas e jurado todas as promessas possíveis, mas não tinha jeito do milagre acontecer, não conseguia mesmo encontrar um pretendente para ser o seu futuro marido.
E Cidinha não era mais nenhuma garotinha. Tinha deixado há muito tempo a casa dos “cinquentinha”, e para a sua tristeza, ainda não tinha sido “abençoada” com o homem dos seus sonhos. E para completar o sonho de Cidinha, era um dia entrar numa igreja para se casar.
Só que Cidinha estava desistindo, pois suas táticas à procura de marido até então não tinham logrado qualquer êxito. Não havia meio de encontrar seu futuro esposo por mais que seguisse à risca suas simpatias e promessas. Acho que até Santo Antônio parecia não mais acreditar que Cidinha pudesse arrumar seu tão desejado marido.
Num certo dia, Cidinha em conversa com uma velha amiga, Rosa Maria, esta lhe falou:
− Cidinha, acho que você deveria tentar outro meio. Pois veja só! Você já experimentou diversas simpatias: orou, fez promessas, ajudou a poluir ainda mais o céu da cidade com a fumaça de suas velas, e ainda implorou de joelhos a Santo Antônio, mas infelizmente até agora não deu nada certo.
− Mas Rosa – dizia Cidinha -, eu não acredito mais. Agora eu estou começando a crer que é coisa do destino. Não adianta, eu nasci mesmo é para ser solteirona e ficar para Titia, ou melhor, estou mesmo é ficando para Vovó… Isso sim!
− Pode parar! – esbravejou Rosa Maria. Não quero ver você com esse pensamento negativo. Onde é que está a sua fé? Você tem que acreditar! Se é um marido que você quer, você vai arrumar…
− Impossível! – afirmava categoricamente Cidinha.
− Não tem jeito, e você sabe que já tentei de tudo. A verdade é que demorei muito tempo para me decidir e agora é tarde demais. Estou muito velha para que possa me aparecer um marido a essas alturas. Com o passar dos anos a gente vai ficando mais exigente e mais chata, aí fica mais difícil mesmo… Fazer o quê… Coisas da idade. Os homens hoje em dia estão atrás das mulheres bem mais jovens – desabafou Cidinha.
Então Rosa Maria falou:
− Você não pode pensar desse jeito. Ouça-me só uma coisinha. Conheci nesta semana uma senhora com mais de sessenta anos de idade que conseguiu arrumar marido, inclusive já está casada, e pelo que consta, casou na igreja e com todas as formalidades de um casamento tradicional.
− Acho que você está querendo é me consolar – disse descrente Cidinha.
− De jeito maneira! – respondeu Rosa Maria. E continuou:
− Jamais mentiria para você. Aquela senhora me disse que também já havia tentado todas as simpatias e promessas e não adiantava. Não havia meio de ela arrumar marido. Aí, como último recurso, ela procurou uma dessas casas de terreiro, dessas que tem “pai-de-santo”, onde foi feito um trabalho todo especial com ela, e na mesma semana ela encontrou o homem que hoje é o seu marido.
Ouvindo isso, Cidinha começou a se animar mais uma vez, e agora com um ar de esperança, perguntou à Rosa Maria:
− E você conhece esse lugar?
− Sim! – disse Rosa Maria sorridente. Aquela senhora me passou o endereço e o telefone de lá. Se você quiser podemos marcar um dia para você passar por uma consulta. E eu vou com você!
Entre umas e outras conversas, as duas amigas combinaram que iriam na próxima sexta-feira à noite, pois segundo informações que Rosa Maria havia recebido daquela senhora, às sextas-feiras o “calor” da energia naquele terreiro era sempre mais intenso.
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E assim, passou-se a semana e, finalmente para Cidinha chegou a sexta-feira.
Partiram as duas amigas para a “consulta” marcada com antecedência com um dos “cambonos” (auxiliar de pai-de-santo) daquele terreiro. Lá chegando, logo se depararam com um grande movimento de pessoas em frente à casa, local sede do terreiro, e ainda com um grande número de veículos, e bons veículos, que ali disputavam as poucas vagas restantes para estacionar, face as tantas guias rebaixadas das garagens da vizinhança.
A noite estava muito bonita. Noite estrelada e de lua cheia, cujo reflexo de sua claridade em conjunto com a claridade das dezenas de velas acesas espalhadas por todos os cantos do quintal daquela casa, deixavam o terreiro bastante iluminado.
Chegaram e foram logo entrando pela lateral da casa, onde um cambono fazia a “recepção” das pessoas. Quando se aproximaram daquele cambono, um negro alto e forte, trajando umas vestimentas “esquisitas”, cuja cara mutante se transformava em sorrisos infantis ou em caretas estranhas, pegou Rosa Maria pelos braços (ela estava à frente de Cidinha), encostou seu corpo ao dela, uma vez o ombro esquerdo e outra vez o ombro direito, e depois fez a mesma coisa com Cidinha, que muito assustada e quase com os ombros deslocados, ficara sabendo com outros “pacientes” que ali se encontravam, que aquele gesto assustador e inusitado daquele cambono, era apenas para desejar-lhes uma boa noite…
Após isso, é que alcançaram o terreiro que ficava aos fundos do quintal da casa, onde várias pessoas, cada qual com os seus problemas, aguardavam reunidas em volta do terreiro pelo momento da “consulta” com o pai-de-santo. E é nessa hora quando as pessoas aguardavam pelo atendimento, que se davam os pedidos do “bango” (dinheiro) pelos vários cambonos, referentes aos pagamentos das consultas.
Num canto daquele terreiro havia um “trono” onde um senhor negro, com cabelos e barbas grisalhos, sentado sobre aquele “trono”, chamava a cada uma daquelas pessoas para a “consulta”, e após ouvi-las em seus diversos pedidos, receitava o “medicamento infalível” para a solução dos seus problemas.
E foram sendo atendidas as pessoas, até que chegou a vez de Cidinha. E em meio ao som das batidas das mãos e dos pés no chão pelas pessoas ali presentes, puxadas pelos cambonos daquele terreiro, e que, diga-se de passagem, o barulho era tanto que devia causar inveja até a Xangô, aquele pai de santo, que era chamado de “seu Zé”, entoando umas palavras estranhas ao meu “modesto vocabulário”, pediu para que acabassem com a “falada” (?…), e, ante a aproximação de Cidinha aos “pés” de seu trono, começou a lhe falar:
− Fia podi si aproximá. Contá quí pra seu Zé o qui ti agonía?
Cidinha estava trêmula. Tremia dos pés a cabeça, pior que vara verde em dia de vendaval. Arrependera-se até os últimos fios de cabelos por ter aceitado aquele convite de Rosa Maria. Mas agora que ali estava não tinha como mais voltar, tinha que encarar aquela situação mesmo sabendo que a religião que professava era completamente contra todo aquele “cerimonial”.
Mas voltando seu pensamento para os motivos que ali o levara, fez força para conter-se e passou a relatar ao seu Zé o seu problema.
Após ter ouvido o relato de Cidinha, seu Zé, entre uma e outra tragada em seu cachimbo, receitou de imediato a medicação para o caso de sua cliente, ou seja, aquela questão só se resolveria com a cerimônia da “funganga” (queima da pólvora).
E então, seu Zé pediu para que Cidinha tomasse posição bem ao centro daquele terreiro e que aguardasse pelo medicamento para a cura do seu mal.
E Cidinha ficou lá, de pé, por obediência e por medo, ficou estática, numa perfeita imobilidade, aguardando com fé o trabalho que iria ser realizado.
Como estava demorando um pouco o início do trabalho, pois seu Zé e seus auxiliares estavam reunidos e conversando baixinho próximo ao “trono”, Rosa Maria perguntou a um cambono que estava próximo a ela:
− Senhor, o quê eles estão fazendo agora?
E aquele cambono respondeu:
− “Xiiiiiiiu!”
− Eles tão arrecebendo as divindadi pra ajudá no trabaio da fia.
Rosa Maria então com os olhos arregalados, se calou de imediato.
Quando terminou aquela “reunião” um cambono foi em direção à Cidinha, que ainda estava lá, imóvel, e começou a dar-lhe “passes” preparando-a para a aproximação do seu Zé trazendo a sua cura.
Após os “passes”, continuando a “sessão”, o cambono se apoderou de uma lata contendo um pequeno orifício, e passou a andar em volta de Cidinha e a balançar aquela lata com o movimento de uma das mãos, desenhando um círculo de pólvora em sua volta. Feito isso, se aproximou seu Zé onde começou a falar aos seus Orixás naquele dialeto pouco comum para o nosso “humilde vocabulário”:
− Oxore, Oxore, têm piedade di seus fio.
− Foi sinhô qui falô meu pai, fio di umbanda têm protetor forti!
− Aceiti esta oferenda di bom grado…
− Faça com qui esti trabaio, ajeiti marido pra fia.
Dito isso, outro cambono riscou um fósforo e encostou naquele círculo de pólvora e este se encheu de chamas, iluminando mais ainda aquele quintal, deixando transparecer bem ao centro do terreiro a silhueta realçada de Cidinha. O “espetáculo” estava até que bonito, não fosse uma das fagulhas daquelas chamas ter saltado sobre as pernas de Cidinha, que na ocasião usava meia-fina. Assim que uma daquelas pequenas faíscas encostou naquele tecido fino, a meia passou a se queimar muito depressa, e sua combustão começou a subir-lhe pelas pernas.
Sentindo este “calor”, Cidinha rapidamente saltou daquele círculo em labareda e correu a pular desesperadamente por toda extensão daquele terreiro, em meio às pessoas, gritando:
− Ai, ai… Socorro, socorro! Tá queimando! Ajuda aqui, minha perna tá pegando fogo!
Cidinha pulava mais do que pipoca em panela de fundo quente, parecia até que estava endemoninhada.
Vendo a cena, imediatamente um dos cambonos correu com uma toalha em direção à Cidinha e jogou-a sobre sua perna, abafando o fogo que a queimava.
O tumulto estava feito. Muitas das pessoas abandonaram rapidinho aquele terreiro. As “divindades” parecem até que saíram “à francesa” daquela cerimônia, deixando seu Zé sozinho sem os seus “guias de proteção”, e que, agora também muito tenso, meio que branco pelo susto e com o seu cachimbo arremessado a um dos cantos do terreiro, até se esquecera daquele dialeto esquisito e falava normal à Cidinha:
− Minha senhora, vem aqui que o meu segurança foi buscar o carro para levar a senhora ao Pronto Socorro…
Após todo esse acontecimento, Cidinha ainda passou algumas semanas com curativo em uma de suas pernas, mas nada de mais grave, sofreu apenas queimadura leve. Não prestou queixa na Delegacia de Polícia por estar muito envergonhada.
Só se sabe que Cidinha ficou de cara virada para Rosa Maria, pois além de ter sofrido a queimadura e da vergonha que passou pulando naquele terreiro com uma de suas pernas em chamas, em meio às gargalhadas “discretas” das pessoas, continua até hoje sem marido.