A CULTURA DO MEDO
Não parece, mas como o tempo passou… Lá se vão 30…, 40 anos quando percorria em minha infância e adolescência pelas ruas e praças da cidade de Araraquara, a contemplar aquela arquitetura singela de cidade interiorana. As fachadas das casas, quase todas parecidas uma com outra, com suas grades ou muros baixos, a meia altura, suficientes para deixarem às mostras suas encortinadas janelas e seus belos jardins. Suficientes também para deixarem perceber seus moradores sentados em alguma cadeira de descanso ou relaxados em alguma rede pelas suas varandas. E tudo isso, com portões não trancados com chaves e ainda, muito desses moradores sentados em frente às suas casas, em bancos improvisados sobre as calçadas, a parolarem por horas com seus confiáveis e amigos vizinhos.
As crianças na rua em seu futebol de gol “caixão”, durante a noite, após mais um dia de atividade escolar (nas boas e saudosas escolas públicas), ensaiavam mais uma jogada de “craque” sobre o asfalto, sem que fossem impedidas pelos seus pais, mesmo porque, o medo ainda não assombrava aquele passado há pouco distante…
E vieram as décadas de 80…, 90…, e os tão esperados e cheios de incertezas anos 2000. E com eles vieram também a juventude e a fase adulta. O fim do regime militar, as “diretas já”, a implantação da democracia em nosso país. Vieram os nossos direitos de votar, de escolher os nossos candidatos políticos. Da fase adulta à nossa esperada maturidade, veio o nosso crescimento para o mundo e vieram nossas carreiras e nossas famílias.
…E veio o medo! O medo pela infância de nossos filhos. O medo das ruas e das praças, do asfalto das grandes e pequenas cidades. Veio o medo de se morar nas casas singelas com suas grades e muros baixos, seus portões “sem chaves”. Veio o medo de nossos vizinhos… Aliás, vizinhos?… Para quê correr o risco de conhecê-los? Afinal, o perigo pode morar ao lado!?…
Veio o perigo inconsciente da violência que nos assola sem piedade, a toda hora e em todo dia, sem ter dó de nossa cultura pacífica de outrora. E por falar em cultura, só se for a do medo. Aquela cultura que, mesmo que não queiramos presenciá-la, que nos escondamos atrás de outros pensamentos e esperanças diversas, invade nossas casas, carros e ambientes, por meio de locutores sensacionalistas dos vários programas televisivos e radiofônicos, e pela imprensa escrita, onde se nota claramente que a simples noção do respeito aos valores humanos em prol da venda de uma cultura (cultura do medo), fora perdida, cultura essa que até mesmo, os mais cultos e inteligentes, os mais esclarecidos de nossa sociedade, mesmo sabendo que o perigo do crime quase sempre não está tão próximo a eles, perdem completamente a sensação de segurança e se “acovardam” achando estarem seguros trancafiados dentro de carros blindados e nos interiores de belos condomínios fechados de prédios e casas.
A quem interessa essa cultura de medo do crime e essa atual descarada impunidade nacional, onde hoje, deixo de ter minha vontade e liberdade de morar numa casa com jardim, para me fechar também num condomínio de prédios, e poder apreciar minha liberdade com sensação de segurança, apenas pela janela de um quarto no décimo segundo andar?
Onde estão aquelas casas do interior e dos tradicionais bairros de nossa São Paulo, com suas belas fachadas, e seus jardins e janelas à vista, a enfeitar e identificar cada cidade paulista ou cada bairro paulistano? E onde estão aquelas pessoas, aqueles bancos sobre as calçadas ao cair da noite nas cidades, no aguardo de um ou outro vizinho para se conversar? E aqueles pequenos “craques” do asfalto, onde foram parar?…
Com que direito alguns dessa sociedade contemporânea, aliada aos interesses escusos por trás de direitos aos não humanos, dessa cultura do medo e pela grande impunidade reinante em nosso país, ceifaram suas liberdades sobre o andar tranquilo e o livre brincar pelas ruas das cidades sem ter que se preocuparem com suas próprias seguranças?
Que pena que esse medo insano do crime, crime que sempre existiu, porém hoje com maior intensidade em razão de políticas demagógicas que enfraquecem cada vez mais a segurança do Estado, aliado à omissão (ou interesses pessoais) daqueles que poderiam editar leis para sua diminuição, e que atualmente, face aos avançados meios de comunicações que potencializa sua evidência, veio tolher nossa completa liberdade em pleno regime democrático, implantando na atual geração, essa cultura do medo, que nos rouba pouco a pouco a essência de viver e, mesmo que passemos nossas vidas sem presenciar ou que sejamos vítimas de algum crime, tanto nos amedronta na simplicidade do dia a dia.